A “justiça do vídeo” ou a pedagogia da tv

Caso Isabella, o cárcere privado de uma família na Áustria, que envolvia também o incesto entre pai e filha; Ronaldinho e os travestis; cenas de sexo (mostradas ad nauseum por uma tv local, aqui em Salvador, obtidas por intermédio de uma câmara escondida) flagrando uma babá, pobre e negra, com seu (suposto) namorado, de classe média e branco, defronte da criança que deveria estar sendo cuidada por aquela babá; as declarações preconceituosas do (já) ex-coordenador do curso de medicina da Ufba, que afirmou que “baiano toca berimbau porque tem uma corda só, se tivesse mais, não tocaria”, o que para ele era uma demonstração inequívoca não só da (pouca) inteligência dos baianos, mas também de como a cultura local, popular, atrapalhava o desempenho dos alunos do curso de medicina em avaliações nacionais (no caso, o ENADE). Notícias que nos assaltaram nestes últimos dias.

A espetacularização promovida pelos meios de comunicação de massa, principalmente a tv, destes fatos, transformam-nos em verdadeiros eventos midiáticos. E isso pelos motivos mais conhecidos da garantia da audiência e, consequentemente, dos ganhos materiais daí advindos. O que nos deveria levar ao questionamento da problemática representação dos fatos, por estes meios de comunicação, tão envolvidos na produção dos eventos que supostamente cobrem “objetivamente”.

Citaria, por exemplo, a condenação prévia do casal Nardoni-Jatobá, já condenados para a opinião pública, mediante a antecipação e publicização de informações contidas em laudos que deveriam ser sigilosos. Algo bastante representativo daquilo que McLaren chama de a “justiça do vídeo”, cujos efeitos puderam ser vistos, por exemplo, na catastrófica cobertura da Escola Base, em São Paulo e, agora, na catarse coletiva que reuniu quase 1000 pessoas para ver – e quem sabe linchar – o casal Nardoni -Jatobá, quando da decretação de prisão preventiva dos dois, agora formalmente acusados de terem matado a menina Isabella.

Mais importante do que qualquer tentativa de fornecer aos telespectadores uma possibilidade de leitura mais crítica acerca dos eventos que a própria mídia pauta e trata de fazer circular, o que temos, além da busca desenfreada pela audiência e pelo lucro, talvez mais importante até que os ganhos materiais, seja mesmo a produção de sentidos envolvidos no processo de bombardeamento de informações e imagens prenhes de significado. Até porque através da garantia de que os sentidos e significados serão apreendidos, o consenso poderá nos conduzir de maneira mais efetiva ao consumo. Claro que o processo é muito mais complexo do que estou tentando descrever, mas a lógica me parece mesmo ser esta. Produz-se ou potencializa-se e medo, o pânico, e daí vendem-se com maior facilidade as promessas de segurança e conforto.

A sensação de quem, como eu que gosta de televisão, mas que está passando mais tempo do que o habitual defronte dela (por estar mais disponível para ela, em função de ter de estar mais tempo em casa, por estar tendo de escrever uma tese), tem me feito pensar sobre os efeitos profundos que o tempo de exposição às imagens, textos e significados contidos em seus programas exerce sobre todos nós.

No meio de toda essa sensação desconfortável de que estamos vivendo num mundo que admira e se compraz com cenas violentas, chamou-me a atenção o caso Ronaldinho. Mais do que tudo, chamou-me a atenção o alívio da rede globo quando pôde finalmente divulgar que Ronaldinho não havia transado efetivamente com os travestis. Pena. A mídia de massa poderia ter aproveitado a situação para contribuir para a diminuição do preconceito contra homossexuais, travestis e transgêneros. [Apesar de que Rogéria, nosso transgênero mais famoso, estivesse outro domingo no programa do Faustão, recebendo homenagens merecidas a seu talento e à sua história]. O fato é Ronaldinho fez o que muitos homens, casados dentre eles, que se assumem heterossexuais, fazem – procuram travestis para atender a seus desejos homoeróticos. Não teria sido uma boa oportunidade para discutir isso? Para desfazer preconceitos?
Não vi ainda o GGB se pronunciar, mas acho que a discussão mais séria, mais pedagógica, por parte dos méis de comunicação de massa ainda está por vir.

8 Respostas to “A “justiça do vídeo” ou a pedagogia da tv”

  1. Duda, você foi curto e objetivo; nunca grosso (rsrs). Tranquilo seu texto, e, como sempre, lúcido! Também tenho vivdo algumas horas a mais em frente da televisão e, também, da internet em blogs de notícias. Você vai ao ponto: a produção de sentidos e posterior proveito disso move os meios. A história do Ronaldinho é de uma inversão total. Promove-se um festival, não de vaziismo como diria Machado de Assis, mas de esvaziamento e, posterior, ressignificação.

    Credo!!, tô falando igual àquelas professoras do ILUFBA e da FACOM. Será que estou vivendo uma espécie de metanorfose kafkiana, vendo-me transmutar-me numa Eneida Leal ou num Monclar Valverde!
    Meu Pai Oxalá é mais! Vai me valer!!

    Mas é isso, irmão, parabéns pleo texto conciso e ágil. Bom de ler, sem, contudo, deixar esmorecer o caráter incisivo que constrói desde o início. Realmente, apresenta um gancho efetivo para o debate que se faz necessário.

    Você escreve muito bem!
    Parabén!

    Nelson Maca -Blackitude.BA

  2. Valeu, Macca. O uso do cachimbo, né, irmão? Queria eu escrever com sua liberdade e inventividade.
    Abração!
    duda

  3. Izaura Cruz Says:

    Oi Eduardo,

    Suas reflexões são muito interessantes e os pontos que você levanta são realmente cruciais. Gostei particularmente da reflexão sobre o caso de Ronaldinho. Concordo com você que a tv perdeu a oportunidade de contribuir para a diminuição do preconceito sobre hossexuais, travestis e trangêneros. Mas penso que a Rede Globo não tem o menor interesse em diminuir esse preconceito, vide a forma como os homossexuais são mostrados em seus programas (principalmente os humorísticos).
    Em relação ao caso de Isabela, me parece que além da espatacularização absurda, faltam algumas discussões anteriores, entre elas a dos limites do “Pátrio Poder”. Porque situações como essas são vistas cotidianamente nas classes populares (e nem por isso ganham visibilidade). O Problema é que tudo que atinge a classe média vira “instantaneamente” interesse nacional.
    Precisamos discutir sobre os limites dos poderes paterno e materno na sociedade como um todo. Até quando a gente vai acahr normal quando o/a nosso/a vizinho/a , amigo/a ou parente diz: ” O filho/a é meu/minha e eu fçao o que eu quiser!” ? Penso que talvez seja essa uma das discussões produtivas que podemos extrair dessa tragédia toda para que não fique somente no espetáculo midiático e na condenação momentânea da barbárie, sem nenhuma reflexão posterio.
    Beijos,
    Izaura Cruz – Professora do Depto de Educação da UEFS.

  4. Pois é, Izaura, mas vc não acha que o casal já foi suficientemente execrado pelo que, supostamente, fez? A questão é que a exposição midiática, a cobertura intensa, quase obsessiva, da mídia pode não estar apenas refletindo um interesse nosso, ou da maioria da população (vide os números que apontam para um aumento de audiência dos telejornais quando estes noticiam o caso) acerca da violência contra crianças. Ou, melhor dizendo, a mídia pode não estar simplesmente atendendo a uma necessidade nossa, a uma sensibilidade nossa, de compreender a violência contra crianças, mas, sim, amplificando e mesmo fabricando esta reação. O que, me parece claro, tem a ver com questões de classe social e raça [aliás, como bem frisou Albergaria, numa entrevista no terra magazine]. A violência diária cometida contra crianças mais escuras e pobres não recebe a mesma atenção. Nunca vi xuxa e nem hebe camargo indo falar com alguma mãe pobre ou favelada que tenha perdido seus filhos de forma violenta. A comoção popular, neste caso pelo menos, dá mostras de ser diretamente proporcional à espetacularização criada pela mídia.

  5. Ana Margarida Says:

    Os entrevistados de Ana Maria Braga precisam ser simpáticos ao papagaio Louro José. Uma livraria só sobrevive com mais de 90% de livros de auto-ajuda. Lojas de CD cada vez menos existem. Esteira da mediocridade para todos!!! – queiramos ou não. Não interessa nem a opinião, nem a escolha, mas o convencimento e a venda.
    Delivery, delivery, delivery

  6. Oi Ana!
    Que bom te encontrar por aqui. Obrigado pela visita. Eu, no entanto, acho que sou menos “apocalíptico” (se me permite usar aquela categoria desenvolvida pelo Humberto Eco para se referir àqueles que vêem a mídia de massa e seus produtos culturais como algo quase sempre de efeitos perniciosos). Eu tô mais para “integrado” mesmo. O que não quer dizer que ache que os textos culturais da mídia não devam ser criticados. Para pagar minha língua – já que lamentava a maneira como os meios de comunicação de massa vinham tratando o caso ronaldinho – a Revista Época publicou uma matéria interessante sobre os travestis e sobre o desejo masculino por eles. Justiça seja feita, no auge da exploração do caso Isabella, a Época publicou, e foi sua capa, uma interessante matéria sobre o drama de Casagrande (aquele comentarista da Globo que está internado para tratar de sua dependência química). Enfim, no meio do caos midiático, alguma coisa sempre se salva.

  7. Laise e Silvia Says:

    Olá Eduardo!

    Gostamos bastante do seu texto pois vc falou a realidade em que muitas vezes não prestamos atenção no que esta acontecendo e sim acreditamos no que a midia fala e ponto, na hora do comercial ninguem para para pensar se esta realmente certo aquilo que estao nos transmitindo, hoje o ser humano esta vivendo de acordo com o que é bom para a “sociedade na mídia” e não o que é bom para ele e para o proximo que só quer ser feliz, continue assim porque de textos em textos em mídia saudavél quem sabe conseguimos abrir os olhos de tanta gente. Abraços e até mais

  8. raphaela e marcela estudantes de pedagogia Says:

    muito bom o texto adorei alguem precisa falar da realida nem tudo que a midia diz é verdade, so quem vivencia estas situações que sabem como é .

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