Sobre ciclismo urbano e cidadania

Gostaria de compartilhar com vocês algumas de minhas leituras favoritas nestes últimos dias de trabalho solitário. Ou melhor dizendo, de leituras feitas durante os intervalos do trabalho solitário que é o de tentar construir uma tese (além das leituras, as transcrições de entrevistas, a coleta de dados, a análise de tudo, a articulação com o referencial teórico e a loucura toda de tirar o sono deste pobre infeliz e angustiado doutorando!).

Pois bem, eu tenho me dedicado já há algum tempo, ainda que de maneira errática, a praticar ciclismo urbano. Ou seja, tenho procurado usar minha bicicleta para me locomover na cidade de Salvador. Posso apresentar diversas razões para isso. Talvez nao consiga listar todas, porque eu nem mesmo sei porque gosto tanto de andar de bicicleta, mas vou tentar enumerar algumas das razões que me fazem aventurar-me por entre as avenidas congestionadas e confusas de Salvador.

Primeiramente, acho que tem o lado lúdico da coisa. A sensação de estar livre sobre duas rodas, deslizando suave sobre o solo. Há o vento fresco no rosto da gente, reforçando a sensação de liberdade que nao temos dentro de um automóvel, por exemplo. E como é interessante ver a cidade da perspectiva de quem está sobre uma bicicleta. Há detalhes da paisagem e, principalmente, das pessoas que a gente não percebe, pelo menos da mesma maneira, quando estamos fechados dentro de um carro.

Em segundo lugar, talvez, seja a utilidade para alguém que possui uma notória falta de vontade em fazer exercício físicos numa academia. Para me exercitar, o ciclismo tem sido uma ótima opção. E eu, a despeito de meu tradicional sedentarismo, tenho ido longe. Para quem conhece Salvador e sabe de suas ladeiras, eu tenho subido várias – ladeira da Barra, a Oito de dezembro, a Av. Princesa Isabel, a ladeira do morro do Gavazza. Outro dia subi a ladeira do Carmo. Enfim, estou surpreso com o meu desempenho sobre rodas.

Associado a tudo isto, há também uma outra razão para eu andar de bicicleta: o fato de ela ser um meio de transporte barato e não poluente. Além de contribuir para não congestionar ainda mais o já caótico trânsito de Salvador. Esta deve ser a razão que mais me anima: sinto-me mais cidadão quando ando de bicicleta. E eu sou daqueles que procura respeitar as leis de trânsito, que pára no sinal, que não anda pelas calçadas, que respeita o pedestre. A recíproca dos automóveis – os “verdadeiros” donos das ruas – contudo, não é verdadeira. É impressionante como parte dos motoristas de automóveis e dos motoristas de ônibus não respeita ciclistas. Alguns motoristas consideram-se “donos” das avenidas. Qualquer “coisa” que os atrapalhe, que os faça ter que reduzir por instantes sua marcha resoluta lhes concede o direito de manifestar seu grande incômodo: de buzinadas estridentes a fechadas violentas. É impressionante como a razão do motorista inverte tudo: é a lei do mais forte e você, ciclista ou pedestre, que saia de baixo!

Bem, ainda assim, acredito que estes sejam problemas de educação no trânsito que podem ser resolvidos, mesmo porque o nosso futuro nas grandes metrópoles terá que passar pelo uso racional dos meios de transporte não-poluentes, como as bicicletas (associados, é claro, a transportes públicos coletivos, como metrôes e ônibus). Uma cidade como São Paulo já não comporta, simplesmente, o número de carros que lá transitam diariamente. Os engarrafamentos e os custos decorrentes à saúde pública são diversos, não só por causa da poluição atmosférica que eles provocam, mas também por conta dos acidentes e de todo o stress sofrido por quem tem que passar horas diariamente dentro de automóveis, parados em congestionamentos. Salvador não está muito longe disso.

Pois bem, encontrei uns blogs maravilhosos sobre ciclismo e cidadania que gostaria de partilhar com vocês. O primeiro que eu recomendaria é o Vá de Bike, do Willian Cruz. Muito bacana mesmo! Desde as dicas de como sobreviver na selva de concreto a textos críticos sobre as cidades e seus problemas. O último post dele sobre o presente – uma bicicleta – que deu à sua mãe é lindo! A partir daí, a gente consegue passear por diversos outros blogs. Um dos quais me chamou bastante atenção: apocalipse motorizado. Os dados que apresenta sobre o número de mortos no trânsito de São Paulo (de ciclistas a motociclistas e a toda sorte de indivíduos que sucumbem à violência do trânsito paulistano) são de fazer a gente pensar: em que transformamos as nossas cidades.

Um dos textos mais bacanas que li no apocalipse motorizado foi o dedicado ao “estilingão”, o título é “um monumento à sociedade do automóvel“. Bem, para quem ainda não sabe, o “estilinguão” é o nome dado àquele ponte que, segundo os autores do blog, é “o maior símbolo da São Paulo higienista, especuladora, corrupta e voltada ao transporte individual”. Mais uma vez: vale a leitura. O que significa dizer: “don’t trust the hype”, ou seja, não confie na mídia. O que a gente lê/vê nos noticiários pode não corresponder àquilo que a gente acredita e quer para uma cidade.

Confiram um trecho:

O estilingão custou R$233 milhões. Dinheiro suficiente para construir 1000 quilômetros de ciclovias em São Paulo ou então para fazer a ligação por trilhos entre o aeroporto de Congonhas e o metrô. Também poderia ser usado para manter faixas de pedestre pintadas em todas as esquinas da capital durante uma década, construir 100 quilômetros de corredores de ônibus ou muitas praças.

E mais outro:

À esquerda da praça, o quilombo remanescente das estripulias de Maluf, Marinho e Cia: a favela Jardim Edith, construída em 1973 e hoje esmagada entre os arranha-céus de vidro e a nova ponte.

As 450 famílias que moram no quilombo urbano já sabem que o futuro é cinza como a ponte. Substituindo o termo “especulação” por “revitalização”, “reurbanização” ou “readequação”, o poder público já declarou: vão ter que sair.

Pelas moradias, construídas em área pertencente ao DER (ironicamente o Departamento Estadual de Estradas de Rodagem), a prefeitura oferece entre R$ 5 mil e R$ 8 mil para cada família. Talvez fosse um valor decente em 1973, quando os primeiros barracos foram construídos na região desabitada. 35 anos depois, é um insulto.

Enfim, pode ser assustador constatar em que estamos nos tornando. Pode ser incômodo perceber o que estamos permitindo que aconteça, como se não estivéssemos simplesmente capitulando, já que nem mais nos damos conta de que as cidades em que vivemos também são nossas. Encapsulados dentro de nossos carros queremos acreditar que a solução é ampliar avenidas, construir cada vez mais espaços para automóveis. O estilinguão paulistano proíbe pedestres e ciclistas – um verdadeiro monumento ao individualismo dos automóveis; além disso deverá expulsar moradores pobres, em nome de uma “revitalização” (leia-se “higienização”) das avenidas, para favorecer a especulação imobiliária. Em quê nos tornamos?

6 Respostas to “Sobre ciclismo urbano e cidadania”

  1. Duda, adorei o texto. Penso no Michel Serres, ele diz que se vc quer pensar bem terá de fortalecer as pernas. Eu até gostaria de andar mais de bicicleta, mas sou meio medrosa. Tenho um amigo que disse que ao fazer faculdade afastou-se de duas coisas: Deus e atividade física. É bom oxigenar pra pensar melhor.
    Besos,
    A

  2. Que bom, Anna, que vc curtiu. Se eu não ando de bicicleta, nestes dias de tormento doutoral, eu enlouqueço! Beijo grande,
    duda

  3. Esse texto veio a calhar numa semana onde os noticiários divulgaram tantas cenas lamentáveis no trânsito brasileiro. É triste perceber que o stress, ou o mau caratismo disfarçado de stress,tem feito chorar famílias inteiras que, por conta do caus urbano ,perdem pessoas queridas.
    Formação e educação no trânsito pode sim ser a saída.

  4. Oi Joilma! Que bom te reencontrar por aqui.
    Feira de Santana tem tantas bicicletas, não é? Há tanta gente rodando pela cidade, se deslocando, levando seus filhos para escola, gente indo trabalhar. Será que veremos, aí em Feira, algum prefeito que cuide dos ciclistas urbanos?

  5. Eduardo, Edu, Duda… São vários nicks… rsrsr
    Bom, saindo um pouquinho dos maçantes processos (trabalho no TJ/SE), fiquei feliz ao me deparar com o seu blog, mais precisamente, com o texto retro.
    Falo isso porque há 3 meses abandonei o carro… Isso mesmo troquei o veículo pela Bike… Agora a minha magrela (uma simples Calou Snake) faz parte da minha rotina.. Ela e a mochila… Somos inseparáveis…
    Apesar de baiana, moro na capital sergipana há 11 anos. A cidade é plana, o que muito facilita, contudo, os desrespeitos em desfavor dos ciclistas são os mesmos dos grandes centos…. Uma pena…
    Pois é companheiro, sofro por andar de forma correta, mas tem que ser…
    Na verdade, tal decisão partiu de um ato que entendo seja de coerência. Sou vegetariana (vegan). Então, para partir para a linha ecológica é um pulo…
    Era isso. Só para partilhar da mesma paixão e consciência…
    Espero receber notícias boas da velha terirnha, agora com a visão de u ciclista…
    Até..

  6. Olá Thays! Que bacana vc ter gostado do texto e se disposto a comentar aqui. Também sou vegetariano e sempre vi o ciclismo associado a tudo o que acho importante hoje, enquanto princípio ético mesmo: ecologia, saúde, respeito ao próximo, está tudo interligado. [O que não quer dizer que não me estresse também no trânsito e acabe perdendo a paciência com motoristas displiscentes 🙂 ]
    Qualquer diz desse vou me arriscar a ir de bike para Aracaju.
    Um grande abraço,
    eduardo

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