O texto a seguir foi publicado, em 2005, nos comments de um blog daqui da Salvador (ou criado a partir daqui), no qual eu costumava travar verdadeiras batalhas culturais (e que acho que me serviram de inspiração para escrever aquele outro post sobre crítica e preconceito). Para as tais batalhas, eu costumava levar meu cavalo-de-batalha preferido: o questionamento dos discursos, ou mais precisamente, dos pressupostos subjacentes às verdades que habitavam de maneira tranquila os discursos sobre música e arte. Principalmente a naturalização de certas “verdades” sobre música e “bom-gosto”.
O que, para tantos dos meus presumíveis “pares” – falo dos aficcionados por música popular em geral, e rock em particular -, era mesmo um cavalo-de-tróia. Frequentemente era tomado como um “Invasor”, ou como um “traidor” da causa da “boa música” e do “Rock” – este definido em termos daquilo que aqueles aficcionado assumiam como “boa música”. Claro que eu levava tudo muito à sério. Mas me divirtia à beça também.
Para uma melhor compreensão da dimensão da coisa, tecomendo a leitura dos comments ao meu texto (no blog ClashCityRockers). A reação violência ao meu texto é muito reveladora de como um certo grupo social (constituído em torno de certas práticas e gostos musicais) atribui valor à música e às artes e define-se muito também pela negação (muitas vezes violenta) a certos gêneros e práticas. Mas, sobretudo, são testemunhos da imensa importância que as práticas culturais e as atividades de lazer (também atreladas a tais práticas) assumem para tantos de nós.
Bem, segue o texto.
“Eu gostava muito de João Gilberto. Eu gostava muito. […] Passei dois anos na CBS como produtor de discos de Jerry Adriani, de Wanderléia, daquela coisa toda de iê iê iê. […] Foi uma vivência fantástica pra mim. Aprendi muito a comunicar. […] Bossa-nova era no Teatro Vila Velha. Era uma coisa bem separada mesmo. Existia um conjunto lá, a orquestra de Carlito, com Caetano e Gil. E existia os Panteras. Duas coisas completamente diversas. Mas no fundo eu acho que tava todo mundo querendo chegar à mesma coisa, era só problema de linguagem. […] Desde o tempo da Tropicália que a gente começou a ver que era isso mesmo, que todo mundo queria a mesma coisa. […] Acho que Caetano tá sabendo o que ele tá fazendo. Ele sabe exatamente. […] Eu acho que tanto Caetano como Gil, embora sendo trabalhos diferentes, são incríveis. […] É claro, porque eu sofri muito a influência de Caetano e Gil. Isso é óbvio. Porque eu cheguei fazendo aquela coisa meio hermética, foi Caetano que abriu, e Gil fazendo aquela coisa.” [Raul Seixas, novembro de 1973.]
“Eu quero mesmo é cantar iê iê iê/ eu quero mesmo é gostar de você/ eu quero mesmo é falar de amor/ eu quero mesmo é sentir seu calor”. [“Eu quero mesmo”, faixa do disco “o dia em que a terra parou” de 1977.]
As citações a Raul, daí de cima são de paquito. Ele havia me dito que iria mandar um trecho de uma entrevista de raul que servisse de contraponto aos comentários ao texto que ele escreveu sobre a jovem guarda lá no blog http://www.rockloco.blogspot.com/ em 19 de julho de 2005).
Bem, ainda que atrasado, e ainda que deslocado – uma vez que a discussão deveria estar se dando no Blog do rock loco e não aqui [estava me referindo ao blog no qual postei o presente texto] – eu queria apresentar alguns argumentos meus aos debates.
Mas voltando à vaca fria: eu queria dizer que mais que o texto de paquito – que busca colocar o rock e a música pop brasileiras numa perspectiva histórica que é muitas vezes ignorada por estas plagas (rockloco, clashcityrockers) – foram certas observações contrárias ao seu texto que me animaram a escrever o que agora escrevo.
É que a gente percebe como na recusa de alguns ao direito de certas manifestações se abrigarem sob os rótulos “rock” e “pop”, como estes gêneros são compreendidos e definidos, Ainda que por exclusão. Ou seja, “rock não é isso”; “pop não é aquilo”.
De maneira geral, nos comentários discordantes ao texto de paquito, há uma bronca com definições consideradas espúrias acerca do que é pop ou rock. Assim, para alguns, tropicalismo não é nem nunca foi pop. Roberto Carlos e a jovem guarda não podem ser tidos como rock. No máximo um roque incipiente, um proto-rock, fruto apenas de nosso subdesenvolvimento. Nada a ver com a “essência” do que é o rock de verdade.
Deixem-me divagar um pouco acerca de nossas assertivas. Do ponto de vista linguistico-discursivo, estamos, enquanto sujeitos históricos, irremediavelmente implicados na descrição das realidades que buscamos descrever/compreender. O que implica dizer que não só não podemos dar conta de capturar a realidade em sua totalidade (que é muito maior e mais complexa que nossas capacidades interpretativas), como também nossas definições são contingentes – ou seja, relativas ao momento histórico, político, social em que nos encontramos.
Para muitos não há como escapar disso. Falo de poder separar a descrição lingüística da realidade de seus “efeitos de realidade” – o que não quer dizer que a gente não deva tentar, mas que deveríamos ser mais cautelosos com as nossas “verdades” e menos ambiciosos com o alcance de nossas definições totalizantes.
Ora, o problema de algumas das “verdades” que leio sobre rock e música pop reside justamente na crença de que podemos capturar e descrever a realidade à sua perfeição e, portanto, de maneira totalizante, atravessando tempos e espaços, chegar à sua essência. Além do que, devido a uma falta de rigor com as leituras históricas, algumas destas “verdades” muito freqüentemente terminam por excluir de suas definições tudo aquilo que não se enquadra na visão estreita e curta daqueles que a afirmam.
Assim, um dos “efeitos de realidade” mais curiosos que já encontrei por estas plagas (mais especificamente no clashcityrockers) foi um texto de Miguel Cordeiro sobre Raul Seixas. Miguel em seu texto “inventa” um Raul que lhe convém – um radical do rock que não “misturava”, fiel a uma identidade rocker . Um ideal de pureza e de radicalismo que se traduz naquela máxima: “rock é rock mesmo”.
A tal “pureza” defendida por Miguel é bastante contestável: não só o rock já havia nascido mestiço, como o próprio Raul misturou rock com baião, cantou canções românticas aboleradas, gravou com Gilberto Gil, com Jackson do pandeiro e seu regional (faixas antológicas), misturou rock com umbanda em “mosca na sopa” etc – tudo isso sem deixar de ser rock! O que para mim demonstra que o rock pode ser tudo o que fizermos dele (sem que precisemos de uma bula ou de uma carteira de identidade fixa para compreendê-lo).
Já no blog do rock loco, nos comments ao texto de paquito, me deparei também com outras “verdades” sobre rock, Raul e sobre música pop:
“Colé paquito. vai enganar outro. jovem guarda? samba? caetano? aproveite e faça um curso intensivão com o pessoal daí do rock loco para aprender o que é rock, ok?”
“O tropicalismo nunca foi pop e sim pretensão cabeçuda de uma improvável articulação margens do Subaé – PUC/SP. E Roberto Carlos, apesar de alguns discos iluminados, sempre quis mesmo ser cantor romântico”.
Negar aos tropicalistas o fato de terem feito música pop me deixa intrigado.
Alguns discos de Gil daquele período flertavam muito intensamente com o rock e com o pop. O disco de 1969 (o que tem Volksvagem Blues), assim como o Expresso 2222, são discos lindamente roqueiros e pop. O disco tropicalista de Gal [o que tem “objeto não-identificado”, “divino maravilhoso”- que já anunciava a genialidade de Jorge Ben, ao gravar dele, e com ele ao violão, “Ele já não gosta mais de mim (que pena)” ] é também um exemplo bem interessante das possibilidades de se fazer música pop no Brasil, naquele período. A faixa de abertura do disco Tropicália “geléia geral”, assim como as canções emblemáticas daquele período: “domingo no parque” e “alegria alegria” também são. Havia ainda os lances com os Mutantes. Aquilo tudo pra mim, ainda mais considerando o contexto histórico e toda a caretice da chamada MPB, tudo aquilo era saudavelmente transgressor e pop.
E quanto a Roberto e à Jovem Guarda, o que posso dizer, nesta minha perspectiva teórica, é que se era aquilo que tínhamos como rock, era rock o que tínhamos. Não acho mesmo que a JG esteja numa posição epistemológica inferior em relação à definição última do que é o rock – mesmo porque não acredito mesmo que esta definição exista.
Enfim, para não me alongar mais, queria dizer que mais que nossas “verdades”, mais que nossas pretensões em capturar o real do real, as coisas podem e são muito mais complexas. “Rock é rock mesmo” e muito mais. Que nos digam Chico Science e Nação Zumbi, Mutantes, Raul Seixas, Roberto e Erasmo.
Luedy