Arquivo para março, 2008

“Cuidado com as drogas!!!”

Posted in Uncategorized on 18 de março de 2008 by Eduardo Luedy

Por conta do post anterior, achei por bem publicar também o tal texto-piada apócrifo (supostamente atribuído a Luis Fernando Veríssimo, mas até onde eu sei, sem confirmação de sua autoria), que lamenta a suposta “má qualidade” de certos gêneros populares, notadamente o pagode, a música sertaneja e o funk carioca.

O texto constrói sua brincadeira a partir da noção de dependência química – daí o “diga não às drogas!” – afinal, as “drogas musicais” também viciam, e mais: emburrecem, alienam. Obviamente que a graça do texto depende de haver um consenso tácito acerca do que conta como música “de qualidade” e o de que aqueles gêneros mais popularescos não merecem nenhuma consideração estética – não importa se eles são enormemente populares, se fazem a alegria de milhares de pessoas.

Publicar o texto-piada é, pois, uma forma de demonstrar como opera uma determinada política cultural, chamando atenção para sua geometrização (ou seja, para aquilo que fica de fora do território da “boa música”) e para suas estratégias (a ridicularização e o menosprezo; mas, principalmente, para a maneira como somos interpelados no texto a nos posicionarmos perante o que conta como “bom gosto”, até para que possamos rir dele/com ele).

Pena eu não ter a transcrição do tal programa em que Tom Zé e os entrevistadores do programa Roda Viva da Tv Cultura afirmavam o que busquei comentar e criticar no último post, mais abaixo, aqui mesmo neste blog.

Segue o texto-piada:

Cuidado com as drogas!!!!

Tudo começou quando eu tinha uns 14 anos e um amigo chegou com aquele papo de experimenta, depois quando você quiser é só parar…” e eu fui na dele. Primeiro ele me ofereceu coisa leve, disse que era de “raiz”, da terra, que não fazia mal, e me deu um inofensivo disco do Chitãozinho e Xororó e em seguida um do Leandro e Leonardo. Achei legal, uma coisa bem brasileira; Mas a parada foi ficando mais pesada, o consumo cada vez mais freqüente, comecei a chamar todo mundo de “amigo” e acabei comprando pela primeira vez.

Lembro que cheguei na loja e pedi:- Me dá um cd do Zezé de Camargo e Luciano. Era o princípio de tudo! Logo resolvi experimentar algo diferente e ele me ofereceu um cd de Axé. Ele dizia que era para relaxar; sabe, coisa leve… Banda Eva, Cheiro de Amor, Netinho, etc. Com o tempo, meu amigo foi me oferecendo coisas piores: o Tchan, Companhia do Pagode e muito mais. Após o uso contínuo, eu já não queria saber de coisas leves, eu queria algo mais pesado, mais desafiador, que me fizesse mexer os quadris como eu nunca havia mexido antes. Então, meu amigo me deu o que eu queria, um cd do Harmonia do Samba.

Minha bunda passou a ser o centro da minha vida, razão do meu existir. Pensava só nessa parte do corpo, respirava por ela, vivia por ela! Mas, depois de muito tempo de consumo, a droga perde efeito, e você começa a querer cada vez mais, mais, mais…

Comecei a freqüentar o submundo e correr atrás das paradas. Foi a partir daí que começou a minha decadência. Fui ao show e ao encontro dos grupos Karametade e Só Pra Contrariar, e até comprei a Caras que tinha o Rodriguinho na capa. Quando dei por mim, já estava com o cabelo pintado de loiro, minha mão tinha crescido muito em função do pandeiro. Meus polegares já não se mexiam por eu passar o tempo todo fazendo sinais de positivo Não deu outra: entrei para um grupo de pagode.

Enquanto vários outros viciados cantavam uma música que não dizia nada, eu e mais outros 12 infelizes dançávamos alguns passinhos ensaiados, sorríamos e fazíamos sinais combinados. Lembro-me de um dia quando entrei nas lojas Americanas e pedi a Coletânea “As melhores do Molejo”. Foi terrível!! Eu já não pensava mais!!! Meu senso crítico havia sido dissolvido pelas rimas miseráveis e letras pouco arrojadas.

Meu cérebro estava travado, não pensava em mais nada. Mas a fase negra ainda estava por vir. Cheguei ao fundo do poço, ao limiar da condição humana, quando comecei a escutar popozudas, bondes, tigres, MC Serginho, Lacraias, motinhas e tapinhas.

Comecei a ter delírio e a dizer coisas sem sentido e quando saía à noite para as festas, pedia tapas na cara e fazia gestos obscenos. Fui cercado por outros drogados, usuários das drogas mais estranhas que queriam me mostrar o caminho das pedras… Minha fraqueza era tanta que estive próximo de sucumbir aos radicais e ser dominado pela droga mais poderosa do mercado: Ki-Kokolexo.

Hoje estou internado em uma clínica. Meus verdadeiros amigos fizeram a única coisa que poderiam ter feito por mim. Meu tratamento está sendo muito duro: doses cavalares de MPB, Bossa-Nova, Rock Progressivo e Blues. Mas o médico falou que eu talvez tenha de recorrer ao Jazz, e até mesmo a Mozart, Beethoven e Bach.

Queria aproveitar a oportunidade e aconselhar as pessoas a não se entregarem a esse tipo de droga. Os traficantes só pensam no dinheiro. Eles não se preocupam com a sua saúde, por isso tapam a visão para as coisas boas e te oferecem drogas. Se você não reagir, vai acabar drogado: alienado, inculto, manobrável, consumível, descartável, distante. Em vez de encher a cabeça com porcaria, pratique esportes e, na dúvida, se não puder distinguir o que é droga ou não, faça o seguinte:

 

– Não ligue a TV no domingo;

– Não escute nada que venha de Goiânia ou do interior de São Paulo;

– Não entre em carros com adesivos “Fui…..”;

– Se te oferecerem um cd, procure saber se certificar que o artista não foi ao programa da Hebe e/ou ao Domingo Legal do Gugu;

– Evite mulheres que gritam histericamente quando vê um artista;

– Não compre um cd que tenha mais de 6 pessoas na capa;

– Não vá a shows em que os suspeitos façam passos ensaiados;

– Não compre nenhum cd que tenha vendido mais de um milhão de cópias no Brasil;

– Não escute nada em que o autor não consiga uma concordância verbal mínima.

A vida é bela!!!! Eu sei que você consegue!!! Diga não às drogas!! Por favor, ajudem a passar esta mensagem…

 

Crítica e preconceito: quando o gosto popular deve ser repreendido

Posted in Uncategorized on 16 de março de 2008 by Eduardo Luedy

[Bem, o texto deste novo post, após um longo período ausente, não é tão novo assim. Na verdade, ele data de abril de 2005. Lembro que o escrevi motivado por um amigo que me pedia que colocasse no papel parte de minhas elaborações teóricas sobre música popular. Principalmente por conta das polêmicas em que me envolvia em alguns grupos de discussão pela internet com meus pares – falo de músicos e/ou pessoas envolvidas com música popular. O que se segue, pois, talvez se encontre já um pouco datado, mas ainda traduz o que penso em grande parte. Bem, por falta de novidade e inspiração, segue o que escrevi.]

Bem, cá estou atendendo a um convite do Luciano Matos – que sei que partiu muito em função de certas polêmicas que encampei quando participávamos juntos de um grupo de discussão na internet. Achei, então, que seria natural atender ao que supunha ser uma expectativa dele em relação aos meus assuntos favoritos – discursos e textos (que circulam e produzem significados) sobre música popular, mídias de massa, diversidade e relativismo cultural.

Mas eu precisava de um novo mote para começar a escrever e assim foi quando assisti ao último programa Roda Viva da TV Cultura [exibido em 04/04 de 2005], cujo convidado, Tom Zé, estava lá para ser entrevistado sobre o seu novo cd – Estudando o Pagode.

O teor da conversa, principalmente quando passaram todos a lamentar a má qualidade de certos gêneros populares, notadamente o pagode paulistano ou baiano, me fez recordar de um texto que andou circulando na internet há alguns meses, atribuído a Luis Fernando Veríssimo. Ambos, texto e programa, ressoavam algumas das minhas questões favoritas: (1) com base em que parâmetros – éticos e/ou estético-musicais – podemos afirmar que uma música ou um gênero é “ruim”? e (2) quem se encontra habilitado para afirmar certas crenças e valores em arte e em música?

Mas vamos por partes. Primeiro eu havia ficado aborrecido com o consenso “esclarecido”, no programa da TV Cultura, entre músicos de prestígio (o próprio Tom Zé e o maestro Júlio Medaglia, que também estava lá para entrevistá-lo) e jornalistas de veículos “importantes”, acerca do que é bom e do que é ruim em música popular. Sem relativismos, com a certeza “mais certa” do que se tem como epistemologicamente “mais correto” em samba, Tom Zé e entrevistadores reafirmavam o que todos já sabemos ou deveríamos saber: o pagode “comercial” é lixo cultural, uma desvirtuação do “verdadeiro” samba.

Uma certeza que se encontrava bem representada naquele texto-brincadeira atribuído a Luis Fernando Veríssimo, com ataques ao pagode paulistano, à música sertaneja e ao funk carioca. O texto fazia graça com a noção de dependência química e seu recado era direto: diga não às “drogas musicais”, elas viciam, emburrecem, alienam. Ali chamava a atenção não apenas o preconceito explícito, em grande medida contra o pagode (principalmente quando descrevia os “sintomas” que acometem as pessoas ligadas a ele), mas a maneira como revelava a escala de prestígio social de certas manifestações musicais – obviamente, aquelas da preferência de seu autor: “meu tratamento está sendo muito duro, a doses cavalares de MPB, Bossa-Nova, Rock Progressivo e Blues. Mas o médico falou que eu talvez tenha de recorrer ao Jazz, e até mesmo a Mozart, Beethoven e Bach”.

Além disso, incomodava perceber que o efeito do texto-piada residia em fazer joça com o gosto “popularesco”, “kitsch”, “brega” de muita gente. E que o riso que provocava em nós dependia de um acordo, um consenso tácito de nossa parte: o de que mpb, bossa nova, jazz, blues, rock “progressivo”(?) bem como a música de tradição erudita européia, são todos música de qualidade, tudo o que o funk carioca, o axé, o pagode não são. Gostaria de acreditar que haveria uma dupla ironia no texto. Mas este não é mesmo o caso.

O pressuposto comum da condenação àquelas manifestações populares, em ambos os casos, no texto e no programa, parte da perspectiva adorniana que aponta para os aspectos “malévolos” da assim chamada indústria cultural – a massificação, a padronização, e o conseqüente “empobrecimento intelectual” de quem escuta aquelas músicas. Tais argumentos, contudo, quando encampados contemporaneamente por admiradores de certos gêneros de música popular (obviamente, não aqueles condenados ao ridículo pelo autor do texto apócrifo) podem e devem ser desconstruídos e criticados.

E isto não apenas porque tais argumentos condenatórios podem ser bastante contraditórios, uma vez que também se aplicariam aos gêneros populares reconhecidos como “de qualidade” (normalmente aqueles da preferência dos críticos, que se encontram autorizados a legitimar suas preferências mais pessoais, ainda que para isso eles não precisem teorizar muito). Mas também porque tais argumentos condenatórios baseiam-se numa maneira de conceber estética e, consequentemente, valor em arte que deveríamos descolonizar ou, no mínimo, atualizar – até por força das evidências empíricas, amplamente disponíveis por aí, acerca do prazer e do envolvimento real que estas músicas proporcionam a milhares de pessoas. Falo aqui das maneiras radicalmente diversas de envolvimento com arte que temos experimentado, de modo amplo e desde que as linhas que traçavam as fronteiras entre arte e entretenimento foram borradas pela chamada indústria cultural. Mas também desde que os avanços nas tecnologias da comunicação e informação ampliaram, em escala global, os meios de produção, circulação e recepção de bens culturais.

Em outros termos, precisamos discutir até que ponto parâmetros tradicionais para se definir o que tem valor estético ainda são válidos para dar conta de explicar as diversas manifestações culturais e artísticas que vivenciamos na atualidade. Ora, massificação, padronização e “empobrecimento” não são aspectos que possam ser tomados como “absolutos” em arte, mas sim relativos às suas formas de produção e aos valores de quem a vive. E isto vale tanto para Tom Zé quanto vale para o Harmonia do Samba.

Me parece claro também que a canção popular – tomemos o rock, como exemplo de música massificada e padronizada – é, regra geral, menos sofisticada melódica e harmonicamente do que, digamos, o Lieder romântico de Mahler ou Schumann. E, no entanto, sabemos todos que Little Richard cantando “tutti frutti” é um dos grandes exemplos de música do século passado, a despeito de sua “pobreza” musical. Assim como James Brown cantando sua “sex machine”.

Ora, se tomarmos como parâmetros de julgamento apenas seus aspectos “intra-estéticos”, ou seja, seus aspectos musicais formais (e mesmo a “qualidade” poética do texto daquele vigoroso funk de James Brown), fatalmente chegaremos à conclusão de uma relativa “pobreza” estética, artística e musical – a mesma a que se pode atribuir ao pagode, ao funk carioca e ao rock.

Também me parece óbvio que o valor que hoje atribuímos, com justiça, à vibrante música de James Brown depende também de aspectos contextuais relativamente ao momento em que o grandfather do soul se inseria: a afirmação de uma identidade negra positiva num momento de luta contra o preconceito e a segregação racial em fins dos anos de 1960 nos EUA. Em outros termos, o valor que atribuímos à música de James Brown não decorre apenas, como se esta fosse autônoma, de suas estruturas formais internas, mas principalmente dos significados que a elas fomos, de certo modo, atribuindo.

É sempre bom recordar que, assim como o pagode e o funk carioca, o rock em seus primórdios era música de proletários, do mesmo modo considerada pobre e obscena. Mudou o rock ou mudamos nós? E já que o tomamos como exemplo de cultura popular relevante, é preciso dizer que muito do rock contemporâneo continua ainda “pobre”, “tosco”, “agressivo” e, em muitos casos, obsceno. Ainda assim, faria sentido hoje condenar o rock por tudo isso?

E o pagode paulistano comercial? Por que ele é “menos” do que certos gêneros igualmente populares que têm prestígio por entre os chamados “formadores de opinião”? Em que termos musicais e artísticos objetivos, podemos apontar suas falhas estéticas? Ou a sua condenação é moral, e não estritamente musical? Além do que, sob o imenso guarda-chuva que estes rótulos abrigam – pagode, axé, funk carioca etc – é tudo igualmente ruim? E quem são estes “formadores de opinião”, por que estão mais habilitados que outros para afirmarem seus preconceitos por aí? Algum dia darão voz àqueles que apreciam, que vivem e convivem de perto com estas manifestações?

Paro aqui por falta de espaço para desenvolver mais estas questões. Se calhar, volto em outra oportunidade para defender com maiores e melhores argumentos a tese de que a condenação a estas formas populares baseia-se apenas, nada mais nada menos, do que (1) em questões de gosto pessoal – o que não quer dizer que isso seja pouca coisa – e (2) na capacidade que alguns têm de fazer com que seus pontos de vista e seus valores sejam tidos como “mais certos” – isto sim é muita coisa.

P.S. Tenho que fazer justiça a textos e pessoas que me inspiraram e/ou ajudaram a desenvolver estes argumentos: Caetano Veloso e Hermano Vianna (principalmente devido a uma matéria que ele escreveu para o jornal Folha de São Paulo, em 25 de Abril de 1999, chamada exatamente “Condenação silenciosa: desprezo a gêneros como axé e pagode revela o despreparo e a intolerância da mídia”), mas também a Richard Shusterman e a seu instigante e belo livro Vivendo a arte, da Editora 34.